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sexta-feira, 10 de março de 2017

Curso de Literatura - parte 1 - O Modernismo, primeira fase

Moderno é, segundo Alfredo Bosi, tudo aquilo que possa incluir os fatores internos das obras literárias: os motivos, os temas e os mitos modernos, masnem tudo que se produziu no período pode ser considerado moderno: os idealizadores da Semana ainda estavam influenciados pela estética do passado:
Teus olhos são loiros vitrais, 
teus frêmitos lembram repiques de sinos,
teus braços as asas de anjos divinos...

Estende como uma ara teu corpo: teu ventre
É um zimbório de mármore
Onde fulge estrela...
(Menotti del Picchia)

Grande parte dos escritores modernistas do Brasil estiveram na Europa absorvendo as inovações estéticas que lá se produziram: em Paris, Oswald conheceu o Futurismo, Bandeira conhecera o Neo-Simbolismo.

Alguns estudiosos consideram o início do Modernismo a partir da Semana de Arte Moderna no ano de 1922. Mas cinco anos antes, ocorria a famosa polêmica entre Monteiro Lobato (1882 - 1948) e a pintora Anita Malfatti (1889 - 1964), influenciada pelo Cubismo e Expressionismo.  

Publicado no jornal O Estado de São Paulo, em 1917, o artigo de Lobato, "Paranoia ou mistificação", afirmava que  "a arte era o resultado de uma visão normal das coisas"  por outro lado, a arte que é moderna e que é também divulgada pela imprensa, a fim de ser "consumida por americanos malucos" "é o resultado de uma visão distorcida da vida" "e produto de um universo alterado ou de um cérebro lesado". Lobato considerava que a arte deveria ser regida por princípios rígidos e leis  fundamentais, independentemente do espaço e do tempo. Esse artigo trouxe consequências negativas para a vida pessoal e profissional para Malfatti. Por outro lado, foi o estopim para que artistas brasileiros de todas as regiões se unissem em defessa a pintora, resultando anos depois na Semana de Arte Moderna. 



Lobato considerava que a arte era o resultado uma visão normal ou adulterada da vida. Nas imagens acima, temos Malfatti e Rembrandt.


A Semana de Arte Moderna ocorreu entre os dias 13 e 18 de fevereiro de 1922. Houve nesses dias conferências, leituras de poemas, danças e músicas. Mas, a principal evento foi a leitura do poema "Os sapos" de Manuel Bandeira (1886 - 1968), dividindo o público entre os que aplaudiam e os que vaiavam, relinchavam e aplaudiam. O Poema era uma crítica bem-humorada a poesia parnasiana: 

Os Sapos
Enfunando os papos, 
Saem da penumbra, 

Aos pulos, os sapos. 

A luz os deslumbra. 


Em ronco que aterra, 
Berra o sapo-boi: 
- "Meu pai foi à guerra!" 
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!". 

O sapo-tanoeiro, 
Parnasiano aguado, 
Diz: - "Meu cancioneiro
É bem martelado. 

Vede como primo 
Em comer os hiatos! 
Que arte! E nunca rimo 
Os termos cognatos. 

O meu verso é bom 
Frumento sem joio. 
Faço rimas com 
Consoantes de apoio. 

Vai por cinquüenta anos 
Que lhes dei a norma: 
Reduzi sem danos 
A fôrmas a forma. 

Clame a saparia 
Em críticas céticas:
Não há mais poesia, 
Mas há artes poéticas..." 

Urra o sapo-boi: 
- "Meu pai foi rei!"- "Foi!" 
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!". 

Brada em um assomo 
O sapo-tanoeiro: 
- A grande arte é como 
Lavor de joalheiro. 

Ou bem de estatuário. 
Tudo quanto é belo, 
Tudo quanto é vário, 
Canta no martelo". 

Outros, sapos-pipas 
(Um mal em si cabe), 
Falam pelas tripas, 
- "Sei!" - "Não sabe!" - "Sabe!". 

Longe dessa grita, 
Lá onde mais densa 
A noite infinita 
Veste a sombra imensa; 

Lá, fugido ao mundo, 
Sem glória, sem fé, 
No perau profundo 
E solitário, é 

Que soluças tu, 
Transido de frio, 
Sapo-cururu 
Da beira do rio...  

 Analisando o poema de Bandeira percebemos que ele ironicamente faz  uso excessivo de vocábulos eruditos, critica o projeto  parnasiano (da 3° a 6° estrofe) e a frieza do parnasianismo que reduziu a poesia a um método (7°). E na última estrofe, surge um dos elementos principais que constituira o Modernismo a união da cultura popular (as cantigas de roda) às teses vanguardistas. "Os sapos" se assemelha muito em alguns trechos a um poema parnasiano muito conhecido da literatura brasileira: "Profissão de Fé" de Olavo Bilac:



Não quero o Zeus Capitolino
Hercúleo e belo,
Talhar no mármore divino 
Com o camartelo.

Que outro - não eu! - a pedra corte 
Para, brutal,
Erguer de Atene o altivo porte 
Descomunal.

Mais que esse vulto extraordinário, 
Que assombra a vista,
Seduz-me um leve relicário 
De fino artista.

Invejo o ourives quando escrevo:
Imito o amor
Com que ele, em ouro, o alto relevo 
Faz de uma flor.

Imito-o. E, pois, nem de Carrara 
A pedra firo:
O alvo cristal, a pedra rara, 
O ônix prefiro.

Por isso, corre, por servir-me, 
Sobre o papel
A pena, como em prata firme 
Corre o cinzel.

Corre; desenha, enfeita a imagem, 
A idéia veste:
Cinge-lhe ao corpo a ampla roupagem 
Azul-celeste.

Torce, aprimora, alteia, lima 
A frase; e, enfim, 
No verso de ouro engasta a rima, 
Como um rubim.

Quero que a estrofe cristalina, 
Dobrada ao jeito 
Do ourives, saia da oficina 
Sem um defeito:

E que o lavor do verso, acaso, 
Por tão subtil,
Possa o lavor lembrar de um vaso 
De Becerril.

E horas sem conto passo, mudo, 
O olhar atento,
A trabalhar, longe de tudo 
O pensamento.

Porque o escrever - tanta perícia, 
Tanta requer,
Que oficio tal... nem há notícia 
De outro qualquer.

Assim procedo. Minha pena 
Segue esta norma,
Por te servir, Deusa serena, 
Serena Forma!

Deusa! A onda vil, que se avoluma 
De um torvo mar,
Deixa-a crescer; e o lodo e a espuma 
Deixa-a rolar!

Blasfemo> em grita surda e horrendo 
Ímpeto, o bando
Venha dos bárbaros crescendo, 
Vociferando...

Deixa-o: que venha e uivando passe
- Bando feroz!
Não se te mude a cor da face 
E o tom da voz!

Olha-os somente, armada e pronta, 
Radiante e bela:
E, ao braço o escudo> a raiva afronta 
Dessa procela!

Este que à frente vem, e o todo 
Possui minaz
De um vândalo ou de um visigodo, 
Cruel e audaz;

Este, que, de entre os mais, o vulto 
Ferrenho alteia,
E, em jato, expele o amargo insulto 
Que te enlameia:

É em vão que as forças cansa, e â luta 
Se atira; é em vão
Que brande no ar a maça bruta 
A bruta mão.

Não morrerás, Deusa sublime! 
Do trono egrégio
Assistirás intacta ao crime 
Do sacrilégio.

E, se morreres por ventura, 
Possa eu morrer
Contigo, e a mesma noite escura 
Nos envolver!

Ah! ver por terra, profanada, 
A ara partida
E a Arte imortal aos pés calcada, 
Prostituída!...

Ver derribar do eterno sólio 
O Belo, e o som
Ouvir da queda do Acropólio, 
Do Partenon!...

Sem sacerdote, a Crença morta 
Sentir, e o susto
Ver, e o extermínio, entrando a porta 
Do templo augusto!...

Ver esta língua, que cultivo, 
Sem ouropéis,
Mirrada ao hálito nocivo 
Dos infiéis!...

Não! Morra tudo que me é caro, 
Fique eu sozinho!
Que não encontre um só amparo 
Em meu caminho!

Que a minha dor nem a um amigo 
Inspire dó...
Mas, ah! que eu fique só contigo, 
Contigo só!

Vive! que eu viverei servindo 
Teu culto, e, obscuro,
Tuas custódias esculpindo 
No ouro mais puro.

Celebrarei o teu oficio 
No altar: porém,
Se inda é pequeno o sacrifício, 
Morra eu também!

Caia eu também, sem esperança, 
Porém tranqüilo,
Inda, ao cair, vibrando a lança, 
Em prol do Estilo!

A Semana teve pouca repercussão na época, mas com o passar do tempo foi ganhado importância histórica. O leitor comum ainda preferia a poesia Parnasiana ou autores regionais como Cornélio Pires, Paulo Setúbal ou Catulo da paixão Cearense. O resultado da Semana foi (i) conseguir representar todas as tendências que ocorriam na arte e na cultura e (ii) aproximar os artistas dispersos  em torno de uma causa comum.

A primeira fase do Modernismo foi caracterizada pela tentativa de solidificar o movimento literário. Assim, no plano do conteúdo, teve uma proposta nacionalista: a reconstrução da cultura brasileira por meio de uma nova leitura, critica ao passado histórico e às tradições culturais (o Modernismo, ao contrário do Romantismo, não idealizam o passado e a cultura) e o desapego aos valores estrangeiros e o consequente fim do complexo de colonizado. E no plano da forma, a defesa da liberdade formal: o verso livre, as rupturas sintáticas, a escrita automática.

Ideologicamente, a primeira fase do Modernismo é dividida em dois grupos: o Antropofágico e o Pau-Brasil é ligado ao comunismo e socialismo, já o Verde-amarelismo ou Escola da Anta ao fascismo (Aceitamos todas as instituições conservadoras, pois é dentro delas que faremos a inevitável renovação do Brasil). A Escola da Anta ou Verde-amarelo defendia um nacionalismo ufanista, criticava  a influência estrangeira excessiva (Estávamos e estamos fartos da Europa e proclamamos sem cessar a liberdade de ação brasileira) e criticavam a teorização da literatura (Há sete anos que a literatura brasileira está em discussão. Procuremos escrever sem espírito preconcebido, não por mera experiência de estilos, ou para veicular teorias).1.

Já o Pau-brasil ou Movimento antropofágico defendia uma poesia primitivista (Filiação. O contato com o Brasil Caraíba [...] O homem natural. Rousseau), a devoração simbólica das influências estrangeiras (Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago), a valorização dos contrastes culturais do Brasil (Nunca soubemos o que era urbano, suburbano , fronteiriço e continental) e a crítica às instituições burguesas (Contra a realidade social, vestida e opressora, castrada por Freud - realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama).2.

 
Os Mutantes e o movimento tropicalista são um bom exemplo de como o movimento antropofágico influenciou a cultura pop nos anos 60. 


Oswald de Andrade (1890 - 1954)
Era paulista de família burguesa. Cursou Direito, mas foi jornalista de profissão. Em 1911, funda a revista "o Pirralho", sendo seu editor até 1917, ano de seu fechamento. Defende Anita Malfatti de Monteiro Lobato na polêmica de 1917 no Jornal do Comércio. Na Europa, conhece os movimentos vanguardistas. Em 1929, sofre os efeitos da crise do café. Foi membro do Partido Comunista de 1931 a 1945.

as meninas da gare

Eram três ou quatro moças bem moças bem gentis
Com cabelos mui pretos pelas espáduas
E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas
Que de nós as mui bem olharmos
Não tínhamos nenhuma vergonha.

Oswald defendia a valorização de nossas origens, da nossa história e da cultura de forma crítica, como o poema acima que faz uma releitura de um trecho da Carta de Pero Vaz de Caminha que descreveu no original as índias, mas que Oswald em sua parodia da Carta descreve algumas prostitutas que faziam ponto em alguma estação de trem (gare).



brasil

O Zé Pereira chegou de caravela
E preguntou pro guarani da mata virgem
- Sois cristão?
- Não. Sou bravo, sou forte, sou filho da Morte
Teterê tetê Quiza Quiza Quecê!
Lá longe a onça resmungava uu! ua! uu!
O negro zonzo saído da fornalha
Tomou a palavra e respondeu
- Sim pela graça de Deus
Canhem Babá Canhem Babá Cum Cum!
E fizeram o Carnaval.

Todos os títulos das poesias de Oswald de Andrade são sempre em minúsculas, independentemente de ser um nome de uma país. No poema, há a presença das três "raças" que constituíram o Brasil: o branco europeu, o indígena e o negro africano. O Modernismo defende que as contribuições populares estejam presentes em suas obras, por exemplo o falar coloquial: "preguntou". O Modernismo retoma constantemente o Romantismo: Gonçalves Dias e sua Canção do Exílio é parodiada quando Oswald substitui a palavra norte por Morte criticando a situação calamitosa que os indígenas passaram a viver após a chegada dos Europeus (pesquisas sugerem que a população de índios antes da chegada dos portugueses era de cerca de 1,5 de pessoas, atualmente a população indígena é de 270 mil correspondendo a 0,02% da população brasileira). E finalmente, Oswald retoma no último verso um trecho do Manifesto Pau-Brasil: O Carnaval do Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os cordões do Botafogo. Barbaro e nosso. A formação étnico rica. Oswald de Andrade considerava o carnaval como a expressão cultural e religiosa do brasileiro. 

Mário de Andrade (1893 - 1945)
O paulista Mário de Andrade foi o principal teórico da primeira fase do Modernismo. Estudou no Conservatório Musical de São Paulo e foi crítico de arte. Em "Há uma gota de sangue em cada poema", Mário critica a carnificina que foi a I Guerra Mundial. Esse livro provoca más avaliações de críticos de orientação parnasiana. Escreve "Paulicéia desvairada" que foi prefaciada por "Prefácio interessantíssimo", um dos principais textos do movimento modernista. Entre  1924 e 1927, faz pesquisas sobre o folclore, os ritmos, as danças os costumes e a variações linguísticas do Brasil que foram fundamentais para a criação de Macunaíma.

Mário de Andrade afirmava que uma "impulsão lírica" o levava a escrever sem pensar porque o inconsciente lhe gritava sugerindo que o poeta era adepto da escrita automática dos dadaístas e surrealistas. Considerava que o lirismo criava frases (estrofes) sem que fossem necessários ou mesmos dispensáveis a contagem das sílabas métricas. Como que respondendo a Monteiro Lobato, Mário dizia que a "arte não consegue reproduzir a natureza" e que "todos os grandes artistas foram deformadores da natureza." Muito interessante também é quando afirma que "arte moderna não significa representar a vida atual no que tem de exterior: automóveis, cinema, asfalto"  e que sendo o livro moderno "elas têm neles sua razão de ser." 3.  

"Macunaíma" é a principal obra do período para se entender adequadamente a proposta modernista. Foi baseada em uma pesquisa realizada pelo etnologista Koch-Grünberg (1872 - 1924) chamada Vom Roraima zum Orinoco. Quando ao conteúdo, Macunaíma apresenta anedotas da história brasileira, aspectos da vida urbana e rural, personagens reais e fictícios, feitiçarias indígenas e muito erotismo. Já quanto a linguagem, a obra apresenta vocabulários indígenas e africanos, frases feitas, provérbios populares e gírias

O trecho abaixo é uma parte de Macunaíma:

Macunaíma tremia que mais tremia e o urubu sem pre fazendo necessidade em riba dele. Era por causa da pedra ser muito pequetitinha. Vei vinha chegando vermelha e toda molhada de suor. E Vei era a Sol. Foi muito bom pra Macunaíma porque lá em casa ele sem pre dera presentinhos de bô-lo-de-aipim pra Sol lamber secando.

Vei tomou Macunaíma na jangada que tinha uma vela cor-de-ferrugem pintada com muruci e fez as três filhas limparem o herói, catarem os carrapatos e exa minarem si as unhas dele estavam limpas. E Macunaí ma ficou alinhado outra vez. Porém por causa dela es tar velha vermelha e tão suando o herói não malíciava que a coroca era mesmo a Sol, a boa da Sol poncho dos probres. Por isso pediu pra ela que chamasse Vei com seu calor porque ele estava lavadinho bem mas tre mendo de tanto frio. Vei era a Sol mesmo e andava matinando fazer Macunaíma genro dela. Só que ainda não podia aquentar ninguém não, porque era cedo por demais, não tinha força. Pra distrair a espera assobiou dum jeito e as três filhas dela fizeram muitos cafunés e cosquinhas no corpo todo do herói.

Ele dava risadas chatas, se espremendo de cóce gas e gostando muito. Quando elas paravam pedia mais estorcendo já de antegozo. Vei pôs reparo na senvergonhice do herói, teve raiva. Foi ficando sem vontade de tirar fogo do corpo e esquentar ninguém. Então as cunhatãs agarraram na mãe, amarraram bem ela e Macunaíma dando muitos munhecaços na barriga da bruaca saiu que saiu um fogaréu por detrás e todos se aquentaram.

Principiou um calorão que tomou a jangada, se alastrou nas águas e dourou a face limpa do ar. Ma cunaíma deitado na jangada lagarteava numa quebreira azul. E o silêncio alargando tudo...

- Ai... que preguiça...

O herói suspirou. Se ouvia o murmurejo da onda, só. Veio um enfaro feliz subindo pelo corpo de Ma cunaíma, era bom... A cunhatã mais moça batia o urucungo que a mãe trouxera da África. Era vasto o paraná e não tinha uma nuvem na gupiara elevada do céu. Macunaíma cruzou as munhecas no alto por de trás fazendo um cabeceiro com as mãos e enquanto a filha-da-luz mais velha afastava os mosquitos borrachudos em quantidade, a terceira chinoca com as pontas das trancas fazia estremecer de gosto a barriga do he rói. E era se rindo em plena felicidade, parando pra gozar de estrofe em estrofe que ele cantava assim: Quando eu morrer não me chores, Deixo a vida sem sodade; - Mandu sarará,

Tive pro pai o desterro, Por mãe a infelicidade, - Mandu sarará,

Papai chegou e me disse: - Não hás de ter um amor! - Mandu sarará,

Mamãe veio e me botou Um colar feito de dor, - Mandu sarará,

Que o tatu prepare a cova Dos seus dentes desdentados, - Mandu sarará,

Para o mais desinfeliz De todos os desgraçados, - Mandu sarará...

Era bom... O corpo dele relumeava de ouro cinzando nos cristaizinhos do sal e por causa do cheiro da maresia, por causa do remo pachorrento de Vei, e com a barriga assim mexemexendo com cosquinhas de mu lher, ah!... Macunaíma gozou do nosso gozo, ah!... "Puxavante! que filha-duma?... de gostosura, gente!" exclamou. E cerrando os olhos malandros, com a boca rindo num riso moleque safado de vida boa o herói gostou gostou e adormeceu.

Quando a jacumã de Vei não embalou mais o sono dele Macunaíma acordou. Lá no longe se perce bia mais que tudo um arranhacéu cor-de-rosa. A jan gada estava abicada na caiçara da maloca sublime do Rio de Janeiro.

Ali mesmo na beira d'água tinha um cerradão comprido cheinho da árvore pau-brasil e com palácios de cor nos dois lados. E o cerradão era a avenida Rio Branco. Aí que mora Vei a Sol com suas três filhas de luz. Vei queria que Macunaíma ficasse genro dela por que afinal das contas ele era um herói e tinha dado tanto bôlo-de-aipim pra ela chupar secando, falou: - Meu genro: você carece de casar com uma das minhas filhas. O dote que dou pra ti é Oropa França e Bahia. Mas porém você tem de ser fiel e não andar assim brincando com as outras cunhas por aí.

Macunaíma agradeceu e prometeu que sim juran do pela memória da mãe dele. Então Vei saiu com as três filhas pra fazer o dia no cerradão, ordenando mais uma vez que Macunaíma não saísse da jangada pra não andar brincando com as outras cunhas por aí. Macunaí ma tornou a prometer, jurando outra vez pela mãe.

Nem bem Vei com as três filhas entraram no cer radão que Macunaíma ficou cheio de vontade de ir brincar com uma cunha. Acendeu um cigarro e a von tade foi subindo. Lá por debaixo das árvores passavam muitas cunhas cunhe cunhe se mexemexendo com ta lento e formosura.

- Pois que fogo devore tudo! Macunaíma excla mou. Não sou frouxo agora pra mulher me fazer mal! E uma luz vasta brilhou no cérebro dele. Se er gueu na jangada e com os braços oscilando por cima da pátria decretou solene: - POUCA SAÚDE E MUITA SAÚVA, OS MALES DO BRASIL SÃO! Pulou da jangada no sufragante, foi fazer conti nência diante da imagem de Santo Antônio que era ca pitão de regimento e depois deu em cima de todas as cunhas por aí. Logo topou com uma que fora varina lá na terrinha do compadre chegadinho-chegadinho e inda cheirava no-mais! um fartum bem de peixe. Macunaí ma piscou pra ela e os dois vieram na jangada brincar. Fizeram. Bastante eles brincaram. Agora estão se rindo um pro outro.

O modernismo, assim como o Romantismo, foi um resgate da cultura e da história do Brasil, de modo que podemos apontar alguns detalhes no trecho acima, como por exemplo o resgate da pronúncia da língua portuguesa no Brasil: "si, milhor, siquer", ou palavras de origem indigena: aipim, muruci, cunhãs; africana: urucungo; popular: senvergonhice, mexemexendo; regional: em riba. Também podem ser encontrados registros da cultura popular ou do folclore: a língua popular e coloquial, as modinhas e os provérbios. O contraste entre  primtivo e o moderno: Lá no longe se perce bia mais que tudo um arranhacéu cor-de-rosa. A jan gada estava abicada na caiçara da maloca sublime do Rio de Janeiro. [...] Ali mesmo na beira d'água tinha um cerradão comprido cheinho da árvore pau-brasil e com palácios de cor nos dois lados. E o cerradão era a avenida Rio Branco.

Manuel Bandeira (1886 - 1968)
A obra de Manuel Bandeira pode ser considerada a mais lírica dos autores até aqui citados, e também com muitas referências românticas, mas sem ser idealizada. No plano do conteúdo, o leitor encontrará temas como a doença que assolava o autor (problema pulmonar, mas que ironicamente não foi a causa da morte de Manuel Bandeira), o cotidiano, o quarto, o jornal a cultura popular, a saudade e a infãncia. No plano da linguagem: o verso livre, o coloquial, a irreverência. Sua poesia era narrativa, como que pequenos textos de jornais, mas bastante lírica, como o poema abaixo:

Poema tirado de uma notícia de jornal

João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

No poema que segue vemos presentes alguns elementos do Romantismo: o escapismo, o erotismo, a idealização do passado, o uso de entorpecentes etc.

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconsequente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d’água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.

1. Manifesto Nhengaçu Verde Amarelo
2. Manifesto Antropófago
3. Prefácio interessantíssimo

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